quinta-feira, 22 de maio de 2014

Ladrão de galinha é julgado pelo STF- o Judiciário não existe para a sociedade, existe para si mesmo



Era uma vez um país de fábula, no qual o pedido de um advogado para que certo delito fosse considerado irrelevante demais para merecer a atenção da Justiça conseguiu galgar as mais altas esferas, até acabar na corte mais relevante. Nesse país de maravilhas, governado a partir de uma cidade chamada Brasília, o furto de dois galináceos com valor estimado em R$ 40 atravessou todas as instâncias do Judiciário e foi se aninhar no colo do Supremo Tribunal Federal (STF), que custa aos súditos da República R$ 500 milhões anuais.

Encarregado de analisar a liminar que extinguisse o processo, Luiz Fux decidiu que o tema terá de ser julgado mais para a frente, em caráter definitivo. A apreciação foi apresentada em quatro páginas, escrita em um idioma aparentado com o português ("neste writ, reitera a tese de aplicabilidade do princípio da bagatela no caso sub examine, tendo em vista o pequeno valor da res furtiva") e emitido no dia 2 — embora merecesse, por justiça poética, ser datada de 1° de abril.
Nesta semana, quando finalmente veio a público que o Supremo andava às voltas com ladrões de galinha — enquanto aguardam julgamento questões como as perdas na poupança decorrentes de planos econômicos, a descriminalização das drogas e o pagamento de precatórios —, a estupefação foi generalizada.
— Quer minha opinião sobre isso? Vou ser claro, curto e grosso. Abre aspas. Ridículo. Fecha aspas — avalia o doutor em Direito Ricardo Giuliani.

Supremo já avaliou até furto de xampu

O responsável por afanar as aves, apropriadamente chamado Afanásio Guimarães, é um jovem de Rochedo de Minas (MG), uma cidadezinha de 2 mil almas. Em uma madrugada de maio, ele invadiu o galinheiro do vizinho e apanhou um galo e uma galinha. Em setembro, a denúncia foi aceita pela Justiça de São João Nepomuceno. Afanásio ficou sob o risco de uma pena de um a quatro anos. A defensora pública Renata da Cunha Martins, encarregada de representar o perigoso terror dos galinheiros, não se conformou. Recorreu ao chamado "princípio da insignificância".
Os habitantes do país de que estamos falando têm superstições em relação a frangos. Dizem que eles podem trazer azar, porque andam para trás. Mas, na esfera judicial, o caso das galinhas só andou para a frente. Depois da primeira instância, ciscou pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nenhum deles deu conta de um assunto de tamanha magnitude. Foi preciso mandá-lo para os luminares do Supremo.
Ricardo Giuliani observa que, para chegar lá, a ação pedindo a extinção do processo teve de passar pelas mãos e ocupar o tempo de muitos servidores de salários respeitáveis, representando um custo infinitas vezes superior ao das galinhas. No primeiro grau, envolveu um representante do MP, um defensor e um juiz. No segundo, um desembargador relator, um desembargador revisor, um desembargador vogal e mais um procurador de Justiça. Chegando ao STJ, teve de passar por ministros e por um procurador da República. Depois disso tudo, caiu nas mãos de Fux, o relator da ação no Supremo.

Fux recebe R$ 32 mil mensais. Cada hora dele custa mais do que as duas galinhas. Se o custo com o processo se limitasse à participação do ministro por 55 minutos, o país já estaria no prejuízo.
— A chance de extinguir uma ação como essa não é a favor do réu, é a favor da sociedade. Mas isso não ocorreu porque o Judiciário não existe para a sociedade, existe para si mesmo — critica Giuliani.
O episódio das galinhas não é isolado. Dois anos atrás, o Supremo teve de desviar a atenção do julgamento do mensalão para avaliar um furto de chocolate. Já foram julgadas também ações relativas a roubo de celular, de garrafa de vinho, de roda de carro e de embalagem de xampu. Para Afanásio, o afanador de penosas, não adiantou sequer ter prontamente devolvido as aves ao seu legítimo proprietário.

Caso poderá ter novo desdobramento em maio, quando a Justiça, em primeiro grau, deve avaliar a suspensão condicional do processo
MAIO DE 2013 Morador do município de Rochedo de Minas (MG) nota o sumiço de um galo e de uma galinha de seu terreiro. O dono dos animais recebe a informação de que o jovem Afanásio Maximiano Guimarães, 25 anos, teria sido visto com as aves. As aves foram depois devolvidas, mas o caso gera um inquérito policial.
SETEMBRO DE 2013 O juiz Júlio César Silveira de Castro, da comarca de São João Nepomuceno, que abrange Rochedo de Minas, cidade de apenas 2,6 mil habitantes, aceitou a denúncia do crime de furto contra Guimarães. O rapaz, entretanto, nunca chegou a ser preso devido ao furto, e a ação tramita ainda sem julgamento.
FEVEREIRO DE 2014 Com base no princípio da insignificância, a defensora pública Renata da Cunha Martins, designada para trabalhar no caso, tenta no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) um habeas corpus para trancar a ação penal. Lembra que os animais valeriam apenas R$ 40. Mas o recurso é negado.

MARÇO DE 2014 Com a primeira negativa, é a vez de a defensoria pública do TJMG entrar no caso. Também baseada na tese da insignificância, tenta trancar o processo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Mais uma vez, o pedido não é concedido.
ABRIL DE 2014 O habeas corpus é tentado pela terceira vez. Também insatisfeito com as decisões anteriores, o defensor público federal que atua no STJ buscou uma medida semelhante no Supremo Tribunal Federal (STF). Outra vez a busca por arquivar o processo é frustrada, desta vez por decisão do ministro Luiz Fux.
MAIO DE 2014 Após transitar pelas mais altas cortes do país, o imbróglio pode ter uma solução no primeiro grau. A pedido da defensora Renata, foi marcada para o próximo mês uma audiência na comarca de São João Nepomuceno para ser discutida a suspensão condicional do processo.

Assuntos que estão na fila do STF

PRECATÓRIOS Em 2013, os ministros do STF julgaram inconstitucional o parcelamento dos precatórios (títulos de dívidas públicas superiores a 40 salários mínimos) em até 15 anos. Agora, o Supremo precisa decidir como ficará o pagamento dos títulos.

MAIS MÉDICOS A constitucionalidade do Mais Médicos, uma das principais apostas do governo Dilma Rousseff, é questionada em ações movidas pela Associação Médica Brasileira e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Universitários Regulamentados. As entidades afirmam que o programa promove o exercício ilegal da medicina, oferece serviço de qualidade duvidosa e viola a legislação trabalhista.

DROGAS Um recurso extraordinário definirá se o dispositivo da Lei de Drogas, que tipifica como crime o uso de tóxicos para consumo próprio, é constitucional. A Defensoria Pública, que questiona a constitucionalidade, diz que "o porte de drogas para uso próprio não afronta a saúde pública (objeto jurídico do delito de tráfico), mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário".

PLANOS ECONÔMICOS Quatro recursos extraordinários questionam perdas na caderneta de poupança decorrentes de planos econômicos lançados entre os anos 1980 e 1990. O julgamento começou em novembro, mas os votos do relator e dos ministros ficaram para 2014.

BIOGRAFIAS A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.815, da Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), questiona os artigos 20 e 21 do Código Civil. Segundo a entidade, pela interpretação dada aos dispositivos pelo Judiciário, a publicação e a veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais têm sido proibidas devido à ausência de prévia autorização dos biografados ou de coadjuvantes.

Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/04/stf-desvia-atencao-de-casos-relevantes-para-analisar-furto-de-duas-galinhas-4470769.html


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