sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

No Brasil só é preso quem quer?

Trechos do livro "No Brasil Só É Preso Quem Quer", escrito pelo promotor Professor Marcelo Cunha de Araújo

Você sabia, caro leitor, que, no Rio de Janeiro e em São Paulo, menos de 2% dos casos de homicídio apurados resultam em condenação do assassino e que no Japão e Inglaterra o índice chega a 90%? Que, com exceção de São Paulo, os índices de esclarecimentos de crimes pelas polícias civis ficam abaixo de 5% em todo o país? Que 99,2% dos homicídios em Pernambuco não são esclarecidos? Que em São Paulo, apenas 6% dos boletins de ocorrência lavrados pela Polícia Militar e efetivamente entregues nas delegacias de Polícia se revertem em inquéritos policiais?

Além disso, é bom saber que, atualmente, devido à estruturação legal e interpretativa do processo penal brasileiro, uma pessoa que tenha residência e trabalho fixos permanecerá em liberdade durante todo o processo criminal, independentemente do crime cometido (como homicídio, estupro, estelionato e, obviamente, todos os crimes do colarinho branco), e que esse processo irá perdurar, em média, por dez a quinze anos. Ao final, caso o condenado não fuja, ele deverá se apresentar espontaneamente para dar início à sua pena (o que, como o leitor já pode imaginar, acaba por não ocorrer na prática).

Também é imperativo que o cidadão saiba que, por coincidência ou não, não existe nenhum crime do colarinho branco entre os crimes hediondos, o que dificulta ainda mais sua punição. Seguindo essa mesma trilha, temos que a investigação criminal, além de não ser dotada de pessoal e meios suficientes, encontra-se sucateada pela falta de treinamento para combate à nova criminalidade que surge com a fluuidez das relações contemporâneas (como os crimes praticados pela internet, crimes financeiros, fraudes à licitação, etc.). Some-se a isso a interpretação extremamente anacrônica dos tribunais que entendem que mesmo o servidor público (como um parlamentar), recebendo seus vencimentos dos cofres públicos, tem a preservação da intimidade a tal ponto de impedir as investigações escudado num absoluto “princípio constitucional da intimidade”.

Por outro lado, é bom o que o cidadão conheça a realidade prisional brasileira. Saiba o interessado que, atualmente, temos cerca de 440 mil presos vivendo como verdadeiros animais em cadeias, presídios e penitenciárias, na maior parte, em péssimas condições de salubridade, sendo que, desses, 189 mil aguardam, ainda, seu julgamento. Apenas em Minas Gerais, segundo dados da Secretaria de Estado de Defesa Social, são aproximadamente 45 mil presos. Esse paradoxo que se engendra perante os olhos críticos do cidadão inconformado com a impunidade pode ser resumido na máxima que “a guerra contra a pobreza tornou-se, no Brasil, a guerra contra os pobres”.

Ora, a equação é muito simples e seu resultado é indiscutível. Coloquem-se, na fórmula, alguns axiomas: o princípio da presunção da inocência e a necessidade de responder em liberdade; o fato de os tribunais, principalmente os superiores (STF e STJ) estarem superlotados de processos (note que o STF julga aproximadamente 100.000 processos por ano, enquanto a Suprema Corte Norte Americana julga em torno de 100); a interpretação extremamente garantista dos direitos de alguns e a coincidência da legislação e da interpretação jurídica preverem a necessidade de apenas aguardar preso aquele que cometeu crime violento.

No somatório dessas “verdades penais insofismáveis e indiscutíveis”, temos que, como costumo dizer aos meus alunos, caso se materializem três circunstâncias elementares na ocorrência real de determinado crime, o acusado NUNCA passará nenhum dia na prisão. Seriam elas: 

i. O acusado não pode ser preso em flagrante (apesar de que a segunda circunstância pode suplantar essa); 

ii. O acusado deve ter residência e emprego fixos (e dinheiro para pagar uma boa e interessada defesa); 

iii. O acusado não pode deixar seu caso cair na mídia.

Na hipótese de uma pessoa conseguir praticar um delito esquivando-se da ocorrência dessas situações, é quase garantido que ela não responderá, em nada, pelo seu delito. E não se trata aqui de uma questão de crime ou de prova, podendo o criminoso se “dar ao luxo” de cometer qualquer crime (se falarmos, especificamente, de crimes do colarinho branco, teremos uma covardia, já que a impunidade ganha “de goleada” da efetividade, sendo estatisticamente insignificantes os casos de atuação minimamente adequada do sistema) e mesmo confessá-lo. Tudo será “resolvido” no trâmite processual em que os juízes serão meros coadjuvantes de uma tragédia estrelada pelos percalços do processo penal.

Bom que se diga, por fim, que não se faz aqui uma crítica às instituições e sim ao sistema, considerando-se que cada um que nele atua é vítima e co-responsável por suas mazelas. Essas apenas serão seriamente trabalhadas quando for desvelada a roupagem jurídica de nossas interpretações absurdas, permitindo ao cidadão comum uma crítica consciente e contundente da impropriedade cabal e completa do sistema criminal, o que se revela como objetivo último de nossa obra que embasou o presente artigo.

Fonte: https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/482/No%20Brasil%2C%20s%C3%B3%20%C3%A9%20preso%20quem%20quer%21.pdf?sequence=3

Um comentário:

  1. Rezemos porque ao q acabamos de ler é a fotografia de uma guerra hibrida gestada pela eclipse do Bem nas almas corrompidas pelo erro

    ResponderExcluir